segunda-feira, 22 de abril de 2024

CECY CONY E A BANDEIRA DO DIVINO


DO LIVRO "Devo narrar minha vida" - Cecy Cony Pág.  84. (Este livro pode ser baixado gratuitamente pelo site da Canção Nova)

(44). A bandeira do Divino

(O "meu novo amigo" de que a Cecy fala é o seu anjo da guarda).

 O ano em que se deu o seguinte caso, não posso bem fixar. Foi, porém, em época anterior a 1911. 

Tinha eu grande admiração pelo Cel. X., pois ouvia papai, muitas vezes, enaltecer o seu caráter brioso e reto, a sua justiça sã em prol dos seus subalternos. Pois bem. Todos os anos, quando se aproximava a Festa do Divino Espírito Santo, Padroeiro de Jaguarão, saía a Bandeira do Divino (como dizíamos popularmente), a angariar donativos para a grande solenidade. E não havia casa de rico ou pobre, estabelecimento público ou particular, onde a querida Bandeira não entrasse para receber o óbulo dos bons e deixar lhes em troca a Sua Bênção. 

Em casa era sempre eu que a recebia, e depois de ter posto o óbulo que papai dava, metia, sorrateiramente, os meus níqueis, pois achava que o “meu óbulo” particular, lá na bandeja, não deveria faltar. E a visita do “Divino” terminava com meu beijo na linda “Pombinha branca”. Era sempre durante três dias que a “Bandeira” percorria a cidade e também os arredores. 

Chegou o dia em que a “Bandeira” devia fazer sua visita ao quartel, que ficava situado num grande terreno quadrado e arrelvado, a “Praça do Quartel”. Quando a “Bandeira”, dirigindo-se para lá, estava já na praça, o Cel. X. mandou o cabo-ordenança com o recado “que a Bandeira voltasse, que não seria recebida no quartel”. A notícia de tal procedimento em breve se espalhou e também em casa ouvi a narração e o comentário do fato. Pela primeira vez ouvi papai reprovar uma ação do seu amigo. 

Quanto a mim, impressionadíssima fiquei com o fato e não podia atinar como o Cel. X. “pudesse ter ficado mau”. Não saía da minha fantasia a triste cena: a s. Bandeira do Divino, corrida do quartel! Tão grande pesar sentia, tanta pena, que sempre estava a cogitar como poderia “alegrar” de novo o Divino Espírito Santo, tão maltratado. E ainda os pobres dos soldados, privados de darem a sua esmola e de beijarem a Pombinha, o que era para mim a privação de uma bênção do céu. 

Passei os dias seguintes em pesar e, mais de uma vez, à noite, na cama, chorei sentidamente de “pena do Divino Espírito Santo” que fora corrido do quartel. Os dias passavam-se e a minha ânsia aumentando, porque a festa se aproximava e eu, embora pensasse, não achava um meio de alegrar o Divino Espírito Santo, na sua grande festa. Faltava apenas uma semana e nada de me sugerir uma boa idéia. Não deixava de rezar nessa intenção, mas nada, nada! 

Uma noite, já na cama, depois de a luz apagada, novamente, “a grande pena do Divino Espírito Santo, que fora expulso”, invade-me a alma. Sento-me na cama e choro, choro tanto que mal pude reter ou abafar os soluços. Era, mesmo, realmente, uma grande dor, dor de criança, sim, mas bem profunda. Creio que, se naquele momento me tivesse dito: “Só darás alegria ao Divino Espírito Santo, na sua festa, se quiseres morrer de Devo narrar minha vida - Cecy Cony 82 modo bem cruel”, parece-me que não recuaria, tão forte era meu desejo de algo realizar para “alegrá-lo”, fazendo assim reparação da ofensa a Ele feita. E quando chorava, sem consolo, a s. Mão de meu Novo Amigo, que até então não se pronunciara, pousa, numa suavidade celeste, sobre minha cabeça, como a prometer-me auxílio. 

As lágrimas estancaram como por encanto, e aquela “Doçura” sorria-me à alma, fazendo-me esquecer que estava na terra e crer que já vivia no céu. Em breves instantes, adormeci. Veio o dia seguinte, e agora urgia realizar alguma coisa para alegrar o Divino Espírito, pois, com a consolação de meu Novo Amigo, não me fugira a pena do Divino Espírito a quem tanto desejava alegrar. Jamais imaginara o que meu Novo Amigo ia, naquele dia (três dias antes da Festa), exigir de sua amiguinha. 

Logo de manhã, quando tomava café, a s. Mão pousa-me suavemente sobre a cabeça, como a acariciar-me. No mesmo instante, com o sussurro de uma voz que me segreda (era, como muitas vezes me sucedia, um pensamento, mas pensamento mui diverso do que os que comumente tinha; era um pensamento que mais me parecia uma voz, do que mesmo pensamento): “Os pobres soldados, na sua fé simples, foram privados do prazer de dar a sua esmola e de receber, com a visita santa, a bênção do Divino Espírito Santo”. 

Ah! pensei, devo pedir a cada soldado que encontrar, um tostão de esmola e dar-lhes a beijar a minha medalhinha do Espírito Santo, que ganhara na festa do ano passado. Mas outro pensamento sucede-se: “Que vergonha! Que parecerá eu a atacar os soldados na rua e pedir-lhes um tostão!?” Como resposta: “Devo, sim, embora me custe muito, alegrar o Divino Espírito Santo na sua festa. E hoje mesmo devo começar, senão não há mais tempo para levar o dinheiro ao vigário”. 

Pela tarde, depois do café, pedi à mamãe para eu mesma ir às lojas procurar os sapatos brancos que papai me compraria para a festa. É que assim poderia encontrar muitos soldados, o que de fato se deu. 

Subo à esquina de uma quadra e surge, na outra extremidade, o 1o. soldado! Meu coração parece querer saltar-me pela boca. Cheguei a desejar que o soldado desaparecesse dali. Era grande a vergonha que sentia! Mas a s. Mão pousa-me suavemente no ombro. Alegro-me. Tudo esqueço. Eis a três passos de mim o 1o. soldado que a santa “Pombinha” me apresentava. 

"Sr. soldado, dê-me licença...” — A cortesia do bom soldado me encorajou e continuei o meu discurso, já preparado e estudado de antemão. “Fiquei com muita pena da Bandeira do Divino, que o Cel. X. não deixou entrar no quartel” (notei a estupefação pintada no rosto do soldado), mas continuei: “E os pobres soldados não puderam dar a sua esmola nem beijar a Bandeira. Mas eu vou pedir, a todos os soldados que encontrar, só um tostão, e juntar muitos para levar ao vigário, antes ainda da festa”. 

O bom soldado incontinente desabotoa a túnica, tira uma moeda, dizendo: “Com Devo narrar minha vida - Cecy Cony 83 muito gosto, menina, aqui está”. E dá-me, não um tostão, mas uma pratinhade 1$000. Alegro-me sobremaneira, e, na minha alegria, dou minha medalhinha ao soldado caridoso; só depois é que me Lembrei de que assim os outros soldados não poderiam beijar a “Pombinha”. Para concluir direi que, naquela tarde, fiz uma “boa coleta”: 30$000 e pouco (o que era para mim um imenso capital), e nenhum dos bons soldados deu-me só um tostão, como lhes pedia, mas pratinhas e até notas de 2$000. 

Regressando para casa, guardei toda a minha fortuna na gaveta da mesinha de estudo. Era uma quantidade de moedas. Não gostava assim, queria uma nota novinha e bonita, para pôr num envelope e mandá-la para a grande Festa do Divino. Noutro dia, ante-véspera da festa, iria ao Escritório Cerqueira trocar as moedas. Que pena! Queria uma nota só, mas com 30$000 não havia jeito. Se fosse 50$000? Que bonito seria! 

Vem-me, então, a idéia: “E se eu desistisse dos sapatos brancos para a festa, fosse com os pretinhos novos de passear e, com os 20$000 que papai me dera para comprá los, completasse os 50$000; receberia uma linda nota para pôr no envelope!” Ai! Mas não ficará bonito vestido branco, carpins brancos, tudo branquinho, com sapatos pretos! Não, o Divino Espírito já se alegrará, também, só com o que os soldados deram. Resolvi: compraria os sapatos brancos e os carpins. 

Mas ao abrir a gaveta para tirar o dinheiro e preparar o pacotinho, eis a s. Mão pousada no meu ombro! Eis o s. Rosto a esperar algo de mim! “Devo, sim, desistir dos lindos sapatinhos brancos!” Papai já me dera os 20$000. Fui ter com papai e disse-lhe que não queria mais os sapatos brancos; pedi o dinheiro para mim. Papai deu-mo. 

Vou ao Escritório Cerqueira e peço uma nota novinha de 50$000. Ainda sobraram algumas moedas que meteria na caixa da porta da Matriz. Volto para casa. Em breve, a nota ocultava-se num envelope fechado, assim sobrescritado: “Um grupo de soldados manda para a festa do Divino Espírito Santo”. Levei eu mesma à Matriz e, como não encontrasse o vigário nem o sacristão, deixei o envelope sobre a mesa da sacristia. 

Na véspera da festa, de noite, na lista das ofertas para a quermesse, tive a grande alegria de ler: “Um grupo de soldados: — 50$000! Mas nunca ninguém descobriu a minha “Façanha”. Fui à festa de sapatos pretos. A recompensa que recebi foi a dulcíssima Visita de Nosso Senhor, que me mostrou estar satisfeitíssimo com sua amiguinha, e que gostava mais de mim com os sapatinhos pretos do que se tivesse ido com os brancos, embora mais bonitos. E até a oitava da grande festa gozei da s. “Doçura” de meu Novo Amigo. Amém. 

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